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Archive for the ‘Imprensa’ Category

Por Guilherme Dearo

“Criador e Criatura”, por Roberto Kaz. Matéria publicada na revista piauí, número 16, janeiro de 2008.

http://www.revistapiaui.com.br/edicao_16/artigo_472/Criador_e_criatura.aspx

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A revista piauí tem um dom para anteceder os fatos. Digo um dom, mas na verdade é competência. Competência de alguém, ou “alguéns”, que, responsável por pautar a revista, descobre valer a pena assuntos aparentemente “out”, que nenhum outro veículo noticia ou reporta naquele momento, mas que se revelam bombas… bombas que só explodem um tempo depois.

Assim foi com César Cielo: um ouro inédito e emocionante nos 50m no Cubo D’água de Pequim, em agosto de 2008. Pois a piauí fizera uma reportagem sobre ele e seus treinos meses antes do mundo inteiro o conhecer, quando ainda no Brasil a mídia e o povo só falavam de outro grande nadador, Thiago Pereira. Assim foi também com Eurico Miranda. Escorraçado da presidência do Vasco, meses antes piauí traçara o seu perfil. E a saga ainda ganhou contornos dramáticos com a queda do Vasco para a segunda divisão. Outro exemplo: a reportagem sobre Daniel Dantas, quando a Operação Satiagraha e o Banco Opportunity ainda não faziam parte do vocabulário e cotidiano do brasileiro.

E não foi diferente com o maestro (agora ex-maestro) da Osesp, Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, John Neschling, que acaba de ser demitido. Exatos um ano antes da demissão do maestro, piauí divagava sobre o trabalho do maestro à frente da orquestra: odiado por uns, amado por outros (mais uns do que outros), seu trabalho estava envolto constantemente com embates políticos, que só aumentaram com o governo de José Serra em São Paulo.

A reportagem de piauí

Partindo de uma apresentação muito elogiada feita pela Osesp no Rio de Janeiro, a reportagem vai traçando um perfil de quem é John Luciano Neschling: seu físico, seus gostos, seus hábitos, o estilo de seu escritório. E logo parte para a história do maestro e da Osesp que passou a ser uma só a partir de 1996.

A reportagem destaca o método de trabalho do maestro e de sua relação com os músicos durante os ensaios, o que constrói um dos pontos mais discutidos. O método de trabalho de Neschling é válido? A questão do trabalho aparece em vários momentos: a relação com o maestro Minczuk, a indisciplina dos músicos (“Aquele foi o momento em que a orquestra acordou do ponto de vista disciplinar e passou da adolescência para a fase adulta”, declarou Neschling sobre o episódio em que demitiu sete músicos), o fato envolvendo Ilan Rechtman, entre outros.

Mas levanta as questões políticas também, mostrando que os desafetos de Neschling não vêm apenas dos músicos indignados com o método de trabalho, mas de atritos políticos, envolvendo principalmente o tucano José Serra.

Ainda há um momento em que o repórter aparece como personagem na história: Neschling reclama que o repórter estava anotando tudo o que acontecia no ensaio e tudo o que ele falava. Diz que não era para fazer aquilo, que era um trabalho interno. Enfim, Neschling acabava de dar mais um exemplo que ilustrava seu tão falado temperamento.

A reportagem, desse modo, traça o seguinte caminho: mostra a série de episódios controversos envolvendo o maestro, que contribuem para intensas críticas sobre ele, principalmente os relacionados ao método de trabalho e sua relação com os músicos; e contrapõe com o sucesso da Osesp e do prestígio alcançado, construído com o trabalho de Neschling ao longo de mais de uma década.

“Criador e criatura” fala sobre o poder do maestro: “Ou seja, apenas o grupo formado por Neschling tem o poder de se voltar contra Neschling”. Entre esse grupo, está o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que sempre apoiara Neschling. Como a decisão do conselho deve ser unânime, FH deve então ter concordado com os outros membros que a situação era “insustentável”. Pois é. Justamente numa época em que José Serra passa a despontar como o principal nome do PSDB, o muito provável nome para a corrida presidencial de 2010.

A revista ainda divagou sobre uma possível demissão do maestro: “O governo paulista pode rescindi-lo, desde que arque com ‘a integral quitação das obrigações pendentes’. Isso significa uma indenização de mais de 2 milhões de reais”. R$ 2,1 mi, pra ser mais exato.

O “vídeo” e as questões políticas

A questão política se mostrava clara já há algum tempo. O atrito entre Serra e Neschling se tornou óbvio quando um vídeo, postado no Youtube, mostrava o maestro criticando o político. O vídeo foi postado claramente por alguém, no mínimo, contrário a Neschling, pois foi intitulado “Neschlingua” e começa com o dizer: “Os últimos compassos de um maestro linguarudo”. Postado em 29 de outubro de 2007, traz uma imagem congelada do maestro com sua fala sendo legendada. E diz que aquilo é a voz de Neschling nos ensaios da Osesp nos dias 25 de abril e 26 de julho de 2007. As tags colocadas para o vídeo são “o, peixe, morre, pela, boca”…

Ele declara no vídeo que há de fato um mal-estar entre ele e o governo, porque este “quer mandar”. Diz que há um conselho da fundação, favorável a ele [Neschling]. E o governo de Serra tem idéias divergentes da deste conselho. No vídeo, o autor destaca que o maestro chamou Serra de “mimado” e “autoritário”.

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Para Neschling, o governo colocou uma série de “cascas de banana” para haver atritos com ele: marcou uma apresentação no dia de seu casamento, mesmo sabendo do fato de antemão; não montou um palco decente para apresentação na Virada Cultural em 2005 (quando Serra era prefeito de São Paulo) e depois se enraiveceu quando Neschling se recusou a tocar naquelas más condições.

Já em 2007, Neschling se mostrou preocupado com o futuro da Osesp, pois ele considerava que, os seus opositores ganhando, o trabalho da orquestra seria prejudicado, afinal, ele tinha sido um dos principais responsáveis pelo excepcional crescimento da fundação: “…e pode ser que os sacanas ganhem. Eu não sei o que vai acontecer com a Orquestra nem com o projeto se os sacanas ganharem, mas isso é outra coisa”.

Fica a dúvida: quem o teria postado? Alguém da Osesp, que gravou o áudio propositalmente para obter provas que prejudicariam o então maestro? Ou esta pessoa teria passado o áudio para alguém interessado em prejudicar Neschling? Observando as duas datas aleatórios e distantes do áudio, pode-se pensar numa outra hipótese: algum músico gravava, talvez por motivos didáticos e profissionais, talvez por já ter um plano em curso, todos os ensaios. E, reparando nas críticas a Serra que apareciam em dois dias específicos, decidiu trazê-las “ao mundo”.

É preciso criar uma conta de usuário para postar vídeos no Youtube. Mas o perfil de quem postou é “falso”. Quem postou esse vídeo criou uma conta somente para postá-lo, sua única atividade no site. Chama-se “neschlingua”. É óbvio que há muitas pessoas com críticas para com Neschling, mas há motivos maiores e obscuros quando alguém se propõe a postar um vídeo para difamá-lo, se valendo de toques pejorativos. Veja neste link três comentários deixados para o usuário “neschlingua”: visões diferentes do ato.

“Em 12 anos, uma orquestra que não existia fez de São Paulo um centro sinfônico”

Agora o maestro pretende entrar na Justiça contra a Osesp por “quebra contratual”, e exige o pagamento dos salários que viria a receber antes da demissão.

Em 21 de junho de 2008, a Folha Online noticiou que John Neschling pretendia sair da Osesp após o fim de seu contrato, que durava até outubro de 2010. Ou seja, de janeiro de 2009 até lá, 21 meses de pagamento, os justos R$ 2,1 mi que ele reivindica.

A questão do mérito de Neschling sempre é algo muito discutido. Ele e seus defensores dizem que seu trabalho excepcional contribuiu para transformar uma orquestra quase inexistente em uma das mais prestigiadas do mundo. Eles fazem ressalvas: o método de trabalho pode ser controverso (muitos músicos reclamam do temperamento de Neschling, dizendo que é agressivo, desrespeitoso e autoritário), mas é essa disciplina e rigidez que moldam as grandes orquestras. Já seus críticos o chamam de “ditador”, diz que recebe um absurdo de salário e que “cospe no prato em que come”, ou seja, que critica o governo que dá o suporte financeiro à Osesp.

Mas, na carta de demissão , o próprio FHC se rende ao mérito do maestro: “…quero reiterar nosso reconhecimento pelos serviços prestados na recuperação e prestígio da Osesp. Não posso deixar de assinalar ainda, que sua liderança foi fundamental para que a orquestra tenha alcançado o patamar de qualidade e respeito internacional que hoje possui. Com esse trabalho, dedicação e visão, a Osesp se transformou em uma das principais referências musicais das Américas.”

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Na mídia… de hoje

Diferente da piauí, que fez um extensa reportagem sobre todas as facetas do caso, desde a evolução grandiosa da orquestra com a chegada de Neschling, até os atritos com os músicos, passando por questões políticas, os portais e jornais noticiaram apenas a demissão, não entrando em detalhes quanto ao histórico do maestro e da orquestra, histórias destes que já se misturam. A ênfase foi no fato de a carta ser do ex-presidente FHC e de que o motivo da demissão teria sido a entrevista de Neschling ao jornal O Estado de S.Paulo.

No G1, “Maestro John Neschling é demitido da Osesp”. No Estado.com, “Maestro John Neschling é demitido da Osesp por email”. O site ainda destaca que o motivo da demissão foi a declaração que o maestro deu ao jornal em dezembro: “Ex-presidente FHC, que preside conselho da orquestra, comunicou afastamento devido entrevista ao ‘Estado’”, diz a linha-fina.

Tanto o portal IG quanto a Veja.com destacaram a questão da entrevista ao jornal Estado de S.Paulo.

Há ainda a nota na coluna de Mônica Bérgamo. Mostrando certo posicionamento diante da situação, diz que “a situação, no entanto, ficou insustentável. Neschling, que chegou a chamar Serra de “meni­no mimado” e “autoritário” logo no começo do governo, conti­nuou a dar entrevistas espina­frando o governador e o secretário da Cultura, João Sayad, mesmo depois de ter sua saída definida. A gota d’água foram as críticas que ele vinha fazendo publicamente à decisão do conselho de formar um comitê para a escolha de seu sucessor.”

A julgar pelos comentários sublinhados, que parecem querer argumentar contra o maestro e a favor do governador, como se estivesse tentando “explicar melhor” ou “esclarecer a situação”, e ainda com conotações de “julgamento”, Mônica Bérgamo deixa bem claro de que lado está nessa situação.

A reportagem e a notícia

Isso mostra algumas diferenças argumentativas entre gêneros diferentes de jornalismo: a notícia e a reportagem.

Como são notícias, o jornalismo de IG, Folha, Estado e dos outros exemplos citados, trabalham com um recorte temporal bem mais restrito, onde a novidade é o mais importante. No caso, o que importa é o relato momentâneo, da demissão via e-mail. Um pouco do passado (críticas, atritos, entrevistas) e do futuro (possível entrada na Justiça) são explorados, mas ainda assim não há muita perenidade. É o fato bem delimitado que importa ser relatado.

Já a reportagem não trabalha exatamente com a novidade, mas mais com a atualidade e relevância. No caso, a piauí fez uma reportagem em janeiro de 2008, já no governo Serra e início das campanhas para as eleições municipais, já prevendo que atritos políticos iriam se transformar, aos poucos, cada vez mais em ações políticas. Naquela época, ninguém falou nada de Neschling, não havia um fato, algum fator de novidade. Mas a piauí fez uma reportagem sobre o maestro, a Osesp, seu temperamento, sucessos, desavenças, atritos políticos. Enfim, traçou todo um panorama, ligando passado, presente e futuro. Esse espaço temporal mais elástico e abrangente é típico do gênero “reportagem” no jornalismo.

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“Vocabulário do jornalismo israelense”, por Yonantan Mendel

 

Para ler esse artigo, clique aqui.

 

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O artigo de Yonantan Mendel é repleto de recursos argumentativos que fazem dele um discurso bem estruturado e convincente. O autor discorre sobre a atuação da imprensa de Israel no conflito com a Palestina e, para isso, escolhe como objeto de análise a linguagem utilizada pelos meios de comunicação israelenses.

 

Logo no primeiro parágrafo, Yonatan revela que trabalhou como correspondente no Oriente Médio pelo Walla.com, o site mais popular de Israel. Dessa forma, o autor legitima seu discurso por meio da competência, ou seja, ele tem autoridade para falar sobre imprensa israelense, porque já trabalhou nela.

 

A escolha do foco de estudo – a linguagem – também relaciona-se à especialidade de Yonantan. Ele faz doutorado no Queen’s College, na Inglaterra, estudando a relação entre a língua árabe e a segurança em Israel. Mas, vale ressaltar que essa informação não constitui uma estratégia argumentativa do autor, porque ela não está no artigo, mas sim na apresentação dos colaboradores, logo no começo da revista.  

 

O foco na linguagem também facilita a argumentação ao possibilitar que o autor traga até o leitor as provas do que ele defende. Trechos de jornais e outros meios de comunicação israelenses estão por todo texto. Yonantan enfatiza as palavras que revelam a postura tendenciosa da imprensa de Israel usando o itálico. Assim, ele chama a atenção do leitor de maneira sutil, pois o público fica com a impressão de que ele mesmo detectou a postura tendenciosa dos meios de comunicação israelenses. O trecho que segue explicita essa estratégia: “(…) as FDI confirmam ou o exército diz, mas os palestinos alegam”.

 

Outro recurso utilizado por Yonantan é a interação com o leitor por meio de perguntas: “‘Os palestinos alegaram que um bebê ficou gravemente ferido pelos disparos das FDI.’ Isso é alguma invenção? (…) Por que então uma reportagem séria relata uma alegação feita pelos palestinos? Por que tão raramente há um nome, um departamento, uma organização ou uma fonte dessa informação? Será porque isso lhe daria um aspecto mais confiável?”. Essas indagações aproximam o público da realidade do conflito e guiam seu raciocínio. Ao incluir o leitor no seu discurso, Yonantan fortalece a argumentação.

 

Além dessas estratégias, o artigo é sofisticado porque se utiliza da ironia. Esta deixa o texto mais atrativo e facilita a aceitação do público, porque normalmente afirma algo tão absurdo que o leitor se vê obrigado a aceitar o contrário. No caso do artigo, “o contrário” é sempre a visão do autor.

 

Neste trecho, esse recurso é evidente: “Em junho de 2006, quatro dias depois de o soldado israelense Gilad Shalit ser seqüestrado no lado israelense da cerca de segurança de Gaza, segundo a imprensa israelense, Israel deteve cerca de sessenta integrantes do Hamas, entre os quais trinta membros eleitos do Parlamento e oito ministros do governo palestino. Numa operação bem planejada, Israel capturou e encarcerou o ministro palestino para Assuntos de Jerusalém, os ministros de Finanças, Educação, Assuntos Religiosos, Assuntos Estratégicos, Assuntos Domésticos, Habitação e Prisões, além dos prefeitos de Belém, Jenin e Qalqilya, o presidente do Parlamento palestino e um quarto dos seus integrantes. Que essas autoridades tenham sido tiradas de suas camas tarde da noite e transferidas para território israelense, provavelmente para servir (como Gilad Shalit) de moeda de barganha, não fez da operação um seqüestro. Israel nunca seqüestra. Israel detém.” O autor faz uma longa descrição que contradiz suas últimas afirmações, configurando, assim, a ironia.

 

Portanto, as principais estratégias argumentativas do artigo de Yonantan são a ironia, as provas, a ênfase, a interação com o leitor e o argumento de autoridade pela competência.  Por ser um artigo, o texto tem claramente uma posição e ele a defende com tanta legitimidade e de maneira tão explícita e sofisticada que atinge até o leitor mais cético.

 

 

Por Mariane Domingos 

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“O caseiro”, por João Moreira Salles

 

Revista piauí, número 25, outubro de 2008.

  

Para ler a reportagem na íntegra, clique aqui.

 

“De como todos os poderes da República – Executivo, Legislativo, Judiciário, polícia, imprensa, governo, oposição – moeram Francenildo dos Santos Costa”. Essa linha fina anuncia o propósito da reportagem de João Moreira Salles, no que diz respeito à atuação da imprensa: provar o quanto a apuração jornalística do escândalo político que envolveu o então ministro da Fazenda, Antonio Palocci, e o caseiro Francenildo dos Santos Costa foi negligente.

 

A reportagem constrói uma realidade na qual a imprensa cai em descrédito junto ao público: enquanto o caseiro inspira confiança, a mídia é alvo de suspeitas e seu discurso perde a autoridade.

 

Para configurar esse quadro, além da construção de um perfil favorável a Francenildo, a reportagem também questiona a competência da imprensa. Cada trecho que remete à atuação da mídia é seguido por um relato do caseiro no qual ele desmente a abordagem da imprensa e mostra como sua imagem foi abalada negativamente.

 

É interessante notar que os trechos de jornais, revistas e telejornais reproduzidos na reportagem guiam a narrativa, pois é, a partir do discurso da imprensa, que o depoimento do caseiro aparece. Em alguns momentos, como neste fragmento – “Francenildo (…) ligou a televisão e ouviu: ‘Um caseiro afirmou em entrevista ao Estadão que o ministro Palocci freqüentava a casa’. E soube que estava intimado a comparecer a CPI dali a dois dias” –, Francenildo é surpreendido pelas notícias sobre sua própria vida. Dessa forma, além da impressão de que o caseiro não tinha idéia da dimensão do escândalo em que estava envolvido (ingenuidade, inocência), o público também fica com a imagem de uma imprensa negligente que descontextualiza as declarações da fonte de tal forma que o próprio entrevistado não reconhece seu discurso.

 

Outra crítica feita à atuação da mídia é a falta de limites na exposição de Francenildo, como bem mostra o trecho que segue: “Os repórteres não o largavam. Descobriram onde morava. Conversaram com vizinhos, mostraram a fachada de sua casa, disseram quanto pagava de aluguel”. O objetivo desse tipo de relato é questionar qual a relevância de informações, como o valor do aluguel ou o histórico de crédito do caseiro, para a boa apuração do caso.

 

A reportagem de João Moreira Salles dá um panorama da atuação da imprensa e, por meio deste, busca atestar a falta de competência desse órgão para falar sobre os fatos que desencadearam o maior escândalo político de 2006. Pode-se dizer, portanto, que o texto de piauí ataca a mídia através da contestação da autoridade dos argumentos presentes no discurso jornalístico.

 

O mau exemplo

 

Além de uma visão mais geral, a reportagem também conta com os relatos específicos das atuações de dois jornalistas: Helena Chagas que, em 2006, era chefe da sucursal do Globo em Brasília, e Andrei Meireles, repórter da revista Época na capital federal. Nessas abordagens, João Moreira Salles recorre a valores, e não a argumentos de autoridade, para desacreditar os dois jornalistas.

 

Helena Chagas foi a responsável por espalhar, em meio aos governistas, o boato de que o caseiro teria recebido dinheiro da oposição para acusar o ministro Palocci. Essa atitude desencadeou a quebra ilegal do sigilo bancário de Francenildo.

 

A jornalista, que morava em uma casa ao lado do imóvel onde começou o escândalo, justifica sua atitude, da seguinte forma: “Era troca de chumbo: você dá informação para receber informação. (…) Imagina, eu tinha sido furada na minha própria rua! Eu queria tomar a frente dessa história. Não fiz nada errado.”

 

Dessa forma, Helena Chagas confirma que foi o orgulho profissional abalado e a vontade de se promover que a motivou a apurar o caso.  Por meio da confissão dela, a reportagem faz um apelo aos valores jornalísticos, como o compromisso com a verdade e com o interesse público, tentando mostrar como Helena desviou-se dessa conduta.

 

Essa mesma estratégia argumentativa é utilizada no caso do repórter Andrei Meireles. Segundo o depoimento de Francenildo e seu advogado, Wlicio Nascimento, o jornalista foi desleal ao não dar a informação completa sobre a origem dos extratos bancários do caseiro. Mesmo sabendo que a quebra de sigilo havia sido ilegal, o blog da revista Época falou apenas sobre o dinheiro que apareceu na conta de Francenildo, prejudicando ainda mais a imagem deste.

 

Pode-se dizer que, dessa forma, a reportagem de João Moreira Salles tenta abalar a confiança do leitor na cobertura da imprensa, fazendo um vínculo entre a atitude dos dois jornalistas e os valores do público. Ela se dedica a mostrar que a postura da mídia não está de acordo com aquilo que o leitor preza, e, portanto, não é digno da confiança deste.

 

O bom exemplo

 

É preciso observar que, embora a reportagem “O caseiro” desacredite a cobertura da imprensa, ela própria é uma apuração jornalística e, mesmo assim, consegue manter a autoridade de sua argumentação.

 

Isso é possível, porque, ao apontar os erros que a mídia cometeu na época do escândalo, João Moreira Salles não apenas questiona a atitude da imprensa, mas, também, convoca o leitor a observar a matéria de piauí como um exemplo de boa apuração.  

 

A reportagem conquistou a autoridade de seu discurso pela experiência: ao analisar tão profundamente a atuação desastrosa da imprensa na época do escândalo, ela conquistou a aceitação do público e ganhou o direito de falar sobre o caso.

 

Mais do que não repetir os enganos do passado, o público fica com a sensação de que a reportagem de piauí serviu para amenizar os estragos na imagem de Francenildo. Afinal, embora tenha sido inocentado, ele é lembrado como o caseiro que ganhou um dinheiro suspeito ou o homem que derrubou o ministro. A reportagem dá espaço para que Francenildo se exponha novamente, mas, dessa vez, para recuperar o anonimato.

 

Por Mariane Domingos

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“Pantagruel, o pingüim e a presidente”, por Daniela Pinheiro

 

Revista piauí, número 22, julho de 2008.

 

Reportagem encontrada em: http://www.revistapiaui.com.br/artigo.aspx?id=682&anteriores=1&anterior=72008

 

A reportagem de Daniela Pinheiro traz um retrato da relação da imprensa, principalmente a argentina, com as presidências de Carlos Menem, Néstor e Cristina Kirchner. Por se tratar da cobertura de uma convivência conflituosa, essa pauta constitui um espaço fértil para o desenvolvimento do discurso argumentativo.

 

A tendência da reportagem para um dos lados do conflito torna-se evidente, sobretudo, por meio da análise das lógicas utilizadas na caracterização dos personagens principais dessa disputa entre a imprensa e o governo.

 

Isolados, porém presidentes

 

O caráter argumentativo da reportagem começa a se desenhar logo na linha fina. A ordem das palavras na frase – “Os atritos do casal Kirchner com Jorge Lanata e toda a imprensa argentina” – dá margem a uma imagem desfavorável aos Kirchner, pois fica a impressão de que foram eles quem iniciaram o conflito. O uso da expressão “toda” também reforça essa interpretação adversa. Ao quantificar os adversários do casal, mostrando que não se trata de um jornalista, mas da imprensa argentina inteira, a expressão acaba intensificando a posição defendida por esses adversários.

 

É interessante notar que o termo “toda”, apesar de isolar os Kirchner no conflito, não faz com que o leitor tenha a imagem de um casal perseguido ou em desvantagem na disputa. Isso ocorre, porque os dois são associados ao poder da presidência e, assim, torna-se incoerente a idéia de fraqueza. Nessa interpretação, fica claro o envolvimento da dimensão intersubjetiva (no caso, aspectos sócio-culturais), a qual Maria Adélia Mauro identifica como característica do trabalho persuasivo. Nessa linha fina, tanto a linguagem, que se mostra polissêmica, quanto a estrutura do período estão a serviço do raciocínio argumentativo.

 

Pantagruel 

 

O jornalista argentino Jorge Lanata é o personagem central da reportagem de Daniela Pinheiro. No texto, ela faz duas abordagens diferentes da personalidade de Lanata.

 

Por um lado, Daniela Pinheiro relata os hábitos pouco apreciáveis do jornalista, como fumar e falar compulsivamente, utilizar muitos palavrões, além de uma rotina alimentar nada saudável. Daí, inclusive, que vem a comparação com Pantagruel, personagem boa-vida, glutão e que se envolve em episódios escatológicos no romance de François Rabelais. Por outro lado, a repórter apresenta ao leitor um Jorge Lanata determinado na sua luta contra os abusos de poder. Ela mostra um homem de projetos grandiosos (listagem das várias publicações revolucionárias que ele fundou) e de grande credibilidade.

 

Analisando as duas imagens que são traçadas de Jorge Lanata, é possível perceber que cada uma delas se utiliza de uma lógica argumentativa diferente. Enquanto as características menos apreciáveis do jornalista argentino se baseiam em valores de referência (premissas mais variáveis), suas virtudes aparecem justificadas por meio de fatos e dados (premissas permanentes).

 

Os vícios (fumar, falar palavrões), por exemplo, apesar de não serem louváveis, não conduzem a uma condenação direta e inquestionável. Não há a certeza de que o público vá construir uma imagem negativa de Lanata, porque esse julgamento depende dos valores de cada leitor.

 

No entanto, quando Daniela Pinheiro aborda a faceta reacionária do jornalista argentino, ela o faz por meio da exposição de dados, como neste trecho: “O ‘Página 12’ surgiu no final dos anos 80 como uma revolução no jornalismo. O jornal dirigido por Jorge Lanata foi tema de reportagens do ‘New York Times’ e da revista ‘Time’. (…) Em seis anos, ‘Página 12’ sofreu cinco atentados a bomba”. Aqui fica claro o uso do raciocínio demonstrativo no qual proposições evidentes que em si mesmas já trazem implicadas a certeza conduzem a uma conclusão verdadeira e inescapável. No caso, essa conclusão irremediável é a postura revolucionária de Lanata e as perseguições que ele sofreu.

 

E, quando o leitor confronta as duas descrições e seus raciocínios argumentativos distintos, ele percebe a inconsistência de um discurso/julgamento frente ao outro. A partir daí, de uma figura cheia de hábitos condenáveis e extravagâncias, Lanata passa a um revolucionário irreverente e corajoso.

  

 Um casal unido nas brigas

 

  

O casal Kirchner é apresentado ao leitor por meio do mesmo raciocínio demonstrativo que baseia a descrição da postura revolucionária de Lanata. A reformulação tendenciosa do Observatório contra a Discriminação na Mídia, realizada por Cristina Kirchner, o envolvimento de seu marido na demissão de Lanata e o episódio da expulsão de um repórter em um evento na Casa Rosada são exemplos de fatos destrinchados ao longo do texto que colaboram para enfraquecer a imagem dos Kirchner junto aos leitores.

 

Alguns fatos apresentados na reportagem, por si só, não levam a uma conclusão inquestionável, mas, a maneira como a repórter os apresenta coloca o leitor em uma condição de certeza absoluta. Por exemplo, na legenda da única foto da reportagem – “Lanata foi demitido três vezes. Antes da última foi à Casa Rosada. ‘O que o senhor tem contra mim, presidente?’, perguntou. ‘Nada’, respondeu Kirchner. No dia seguinte, estava na rua” – a ordem das frases conduz o raciocínio de tal forma que, ao final da leitura, o público não tem dúvida do envolvimento de Néstor Kirchner na demissão de Lanata. Se as premissas contidas nessas frases fossem analisadas isoladamente ou se a ordem dos períodos fosse alterada, a informação não teria o mesmo efeito, ou seja, o leitor, provavelmente, não teria tanta convicção da influência do presidente na demissão de Lanata.

 

Pode-se dizer que, muitas vezes, o relato isolado de um episódio não constitui um fato inquestionável, uma premissa permanente, mas essa veracidade pode ser alcançada por meio de estratégias textuais. Maria Adélia Mauro, explica essa possibilidade, ao citar Declerq: “a natureza argumentativa se define tanto pela matéria da qual se ocupa quanto pelo método que subjaz e orienta o processo de sua constituição”.

 

 Um herói portenho

  

Ao usar diferentes raciocínios argumentativos na descrição dos personagens, a reportagem de Daniela Pinheiro deixa clara sua posição favorável ao jornalista Jorge Lanata, na disputa entre a imprensa e o governo argentino.  

 

Essa tendência evidencia-se ainda mais no último parágrafo onde, por meio de uma seqüência de frases, constrói-se a imagem final e conclusiva dos Kirchner como manipuladores de todo o cenário argentino.

 

E, uma vez confrontado com essa situação de abuso de poder, o leitor estabelece definitivamente sua posição favorável a Lanata e suas iniciativas. O “Pantagruel” mal-educado e extravagante dos primeiros parágrafos do texto transforma-se, no decorrer da reportagem, em um revolucionário que, mesmo com toda sua irreverência, é um herói.

 

Por Mariane Domingos

 

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“O paparazzo nosso de cada dia”, por Cristina Tardáguila

Revista Piauí, número 23, agosto de 2008.

Reportagem encontrada em: http://www.revistapiaui.com.br/artigo.aspx?id=717

O melhor ângulo de um paparazzo

A revista Piauí trouxe, na edição do mês de agosto, na seção “Anais do Jornalismo”, uma reportagem, de Cristina Tardáguila, intitulada “O paparazzo nosso de cada dia”. Acompanha o título a seguinte linha fina: “Adeptos do jeitinho e da conciliação, os fotógrafos de celebridades brasileiros só continuam agressivos nos dicionários da língua portuguesa”.

Relacionando o título da reportagem à seção na qual ela foi publicada e considerando que há bastante discussão quanto à classificação como jornalista de profissionais que divulgam a intimidade de celebridades, é possível estabelecer algumas hipóteses quanto ao objetivo de Cristina Tardáguila.

Se for levado em conta o perfil do leitor de Piauí (que, de uma maneira geral, pouco se interessa pelas revistas nas quais se publica o trabalho dos paparazzi), a tendência é supor que a reportagem não aproximará a atividade desses fotógrafos à prática jornalística. No entanto, essa impressão se dissipa logo na linha fina. Ao falar em “jeitinho” e “conciliação”, a repórter desfaz a imagem de perseguição violenta que se atribui aos paparazzi e anuncia que o texto não será tão hostil a esses profissionais.

Ajustando o foco

A principal estratégia utilizada por Cristina Tardáguila para atrair o leitor que, supostamente, não partilha de uma visão amistosa do trabalho dos paparazzi é a aproximação: ela apresenta ao público a realidade desses fotógrafos. Dessa maneira, além de impor um contexto comum entre ela e o leitor, a repórter aproveita-se de um dos recursos que Philippe Breton aponta como válidos para se obter uma argumentação bem-sucedida: a curiosidade. O público de Piauí, provavelmente, não conhece a rotina de um paparazzo e, portanto, encara a reportagem como novidade, enquadrando-se bem no perfil de leitor curioso mais predisposto a absorver novas visões.

O clique

A aproximação entre o leitor e o trabalho dos paparazzi realiza-se textualmente por meio de um dos recursos típicos do jornalismo literário: a humanização. O texto começa, desenvolve-se e termina com um protagonista: Gabriel Reis, paparazzo carioca. Em termos de estrutura textual, é como se a história desse profissional fosse o tronco da reportagem e as outras informações e personagens fossem ramificações.

Aqui cabe ressaltar que, em um estilo jornalístico mais tradicional, essas informações, que aparecem como ramificações na reportagem de Piauí, constituiriam a linha central da matéria. Gabriel Reis e os outros nomes do texto seriam apenas entrevistados que contribuem com seus depoimentos para complementar as informações objetivas. No jornalismo literário, os entrevistados são personagens, porque, mais do que participar com seus depoimentos, eles contribuem com seu comportamento diante do observador, o repórter.

Por mais que em alguns momentos, Cristina Tardáguila exponha em seu texto algumas informações que parecem distanciar o trabalho dos paparazzi da prática jornalística, pode-se dizer que, de uma maneira geral, o texto dela cria uma paralelo sutil, porém claro, entre essas profissões.

Por exemplo, ao relatar como os paparazzi conseguem as informações – “Paparazzo que se preza tem cartões de visita com números de telefone em letras garrafais, espalhados por quiosques de praia, estacionamento e lojas. Vale a pena até botar nas mãos das melhores fontes celulares pré-pagos” -, a repórter usa um termo típico do meio jornalístico (“fontes”) e, assim, evoca a imagem de um jornalista acionando seus “contatos”.

Quando descreve o processo de escolha das fotos que serão publicadas – “Ele usa, como disse, ‘três filtros’ na seleção: ‘O primeiro é se a pessoa é interessante e está no ar. O segundo é se ela aparece com algo inusitado. E o terceiro, se está fora de seu habitat natural'” -, a repórter também relaciona a profissão dos paparazzi com a dos jornalistas. Os “três filtros” remetem à noção de valores-notícia do jornalismo.

Além da comparação, a prática dos paparazzi é abordada também sob o aspecto financeiro. Quando fala sobre o perfil desses profissionais, ressaltando que a maioria mora nos subúrbios ou favelas, Cristina Tardáguila apresenta essa ocupação como um trabalho qualquer que se exerce para sobreviver. Essa idéia, inclusive, é reforçada pelo título da reportagem, “O paparazzo nosso de cada dia”, que é uma apropriação da frase “O pão nosso de cada dia”. Ao identificar essa relação de necessidade na profissão dos fotógrafos, a repórter se utiliza da estratégia que Philippe Breton chama de ressonância, pois ela enquadra uma imagem mais específica dos paparazzi em uma visão mais geral de trabalho (sobrevivência).

Essa idéia de que a prática do paparazzi tem uma motivação apenas financeira é reforçada pela falta de interesse dos fotógrafos pelo objeto de seu trabalho: a vida íntima das celebridades. A repórter se utiliza da declaração de Rodrigo Queiroz, editor-assistente da Quem, para fundamentar a imagem mais amistosa que ela tenta construir dos paparazzi: “‘Quando uma cópia dessas vender menos, paramos de publicar’, disse Rodrigo Queiroz. Em outras palavras, quem gosta de intimidade alheia é o leitor, não o fotógrafo”.

A estratégia argumentativa de Cristina Tardáguila pode ser percebida também na linguagem que ela utiliza. Bem ao estilo jornalismo literário, o texto é permeado por metáforas. Nesta, por exemplo, o paparazzo é inferiorizado, até animalizado: “E é quase inevitável que os fotógrafos se aglomerem na borda dos pratos, esperando para abocanhar as migalhas dessa festa permanente, sem dia nem hora”.

A imagem

Seja pela linguagem, seja pela estrutura ou estilo textual, Cristina Tardáguila consegue organizar sua argumentação e, por fim, justificar a presença de sua reportagem na seção “Anais do Jornalismo”. Ao mesmo tempo em que Cristina partilha com o leitor a realidade da rotina dos paparazzi, ela lhes apresenta uma imagem menos hostil e mais respeitosa dessa profissão.

E, ao contrário do que se possa imaginar, ela não utiliza apenas a estrutura textual para alcançar uma argumentação bem-sucedida. Conforme foi possível observar, Cristina Tardáguila aproveitou-se também da linguagem literária, do estilo da revista e do perfil do leitor de Piauí. A recompensa desse exercício argumentativo foi, com certeza, evitar que a reportagem “O paparazzo nosso de cada dia” virasse uma ironia na seção “Anais do Jornalismo”.

Por Mariane Domingos

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