“O Caseiro”, por João Moreira Salles
Revista piauí, número 25, outubro de 2008
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De como inocentar o caseiro
A reportagem “O Caseiro”, publicada na piauí do mês de outubro, se suporta sobre algumas premissas para chegar a duas conclusões supostamente inevitáveis: o caseiro é inocente e todas as instâncias detentoras de poder que atentaram contra sua integridade moral devem ser punidas.
Para que o leitor possa chegar a estas conclusões sozinho, João Moreira Salles, autor do texto, usa a estratégia do reenquadramento do real. O conceito, de Philippe Breton, “permite constituir o fundo no qual a opinião proposta encontrará harmoniosamente seu lugar”.
Este pano de fundo tem sua autoridade principal (acreditamos na situação reenquadrada praticamente sem ressalvas) em um fator que a Ana Athanásio já destacou: quem o diz. João Moreira Salles tem credibilidade junto ao público por trabalhos anteriores e insere marcas da apuração detalhada no próprio texto. Afirma, em certo momento, que está imerso nessa história há mais de um ano. São ouvidos basicamente todos os personagens que tiveram ligações diretas ou indiretas com o caso (exceto, claro, aqueles que não quiseram conceder entrevistas), além de técnicos e especialistas. Todos esses ingredientes corroboram a imagem de seriedade do trabalho e fazem com que nós, leitores, acreditemos naquilo que nos é dito.
A estrutura da narrativa também é parte constitutiva deste processo. O papel crucial da imprensa na vida de Francenildo é demonstrado, como Mariane Domingos apontou aqui, ao transformá-lo em espectador de sua própria vida. Todos os acontecimentos importantes, nos quais ele está inserido, lhe são transmitidos via rádio, televisão ou jornal impresso.
A inserção de fragmentos de acontecimentos ou diálogos imprescindíveis para o futuro desenrolar da narrativa, e que só terão sua importância explicitada mais tarde, são parte importante da reconstrução do real proposta como verdadeira. Antes da CPI dos Bingos estourar, de Francenildo ser transformado “no homem mais importante do mundo” e “virar celebridade”, João Moreira Salles conta a ida do caseiro ao Piauí, para procurar seu pai. Na volta, ele se sentia “meio alegre”. O porquê do sentimento só será destrinchado páginas mais tarde, mas o elemento já está inserido na narrativa. Ao lermos a história completa, a tomaremos como legítima, pois ela faz parte de um trecho que já havia sido postulado como verdadeiro.
Todos estes mecanismos de argumentação ainda terão dois acréscimos: larga fundamentação factual da matéria e uma crescente simpatia pelo caseiro, retratado como simples em diversas situações, como quando se vê sozinho e desamparado, mas sua principal preocupação repousa em ter uma boa roupa para comparecer a seu depoimento no Senado.
Cuidado – caseiro altamente inflamável
Jogado numa briga política da qual não fazia parte, Francenildo teve boa parte de sua vida desconstruída pela fome de notícias da imprensa e pela ganância sem limites dos políticos de Brasília (e os dois poderes trabalharam conjuntamente para que essa operação acontecesse).
A CPI dos Bingos tinha um objetivo político pré-fixado desde o início – “conseguir o maior número de baixas no governo”, segundo um assessor parlamentar do quadro técnico. Derrubar Antonio Palocci, homem forte e provável sucessor de Lula àquela altura, seria um presente dos céus para a oposição, representada pelo PSDB e pelo PFL (atual DEM).
Francenildo sabe que Palocci freqüentou a casa no Lago Sul, ao contrário do que o último havia afirmado em depoimento. Por esse acontecimento fortuito, de um instante a outro o caseiro passa a ser peça-chave para a queda do todo-poderoso Ministro da Fazenda.
Quando esse grande personagem é descoberto, trazido ao Senado e entregue à imprensa pelas mãos do corretor de imóveis João Gustavo Coutinho, fica claro, na reportagem, como pouco importava a tão exaltada cidadania de Francenildo, sua coragem de homem humilde frente a todos os caciques dos partidos, desde que ele cumprisse os propósitos políticos que lhe haviam sido impostos.
A história segue sempre numa constante contradição. Ao buscar ajuda de pessoas que sempre o trataram de maneira simpática (e que ele considerava poderosas o suficiente para que o ajudassem), Francenildo vai atrás da sua própria moenda. Ao participar de discussões cujo intuito era estabelecer medidas para garantir sua segurança, o caseiro não percebe que, enquanto Antero Paes de Barros procura um jornalista de “confiança” para publicar sua versão dos fatos, ninguém se preocupou com o que era imprescindível naquele momento: um advogado.
O companheiro
De fato, o advogado de Francenildo só irá aparecer no dia em que a entrevista concedida ao jornal O Estado de S. Paulo foi publicada. Até então, ele não havia recebido nenhum tipo de aconselhamento jurídico e acabou por falar muito mais do que seria aconselhável durante a conversa com a repórter Rosa Costa. Como escreveu Moreira Salles, “ao decidir esclarecer o que Francisco não dissera à CPI e que tanto o assustara – a ida a Ribeirão com malas de dinheiro – ,Francenildo acabara corrigindo o que não precisava de correção.”.
O advogado Wlicio Chaveiro Nascimento é, à primeira vista, despreparado para o caso que irá assumir. As mostras disto estão em seus negócios fracassados e no fato de que, na época, “não lia jornais, não acompanhava política nem se interessava pelos escândalos da República.”. Ao longo do caso, no entanto, a reportagem desmente essa impressão e apresenta Wlicio não só como bom advogado, mas também parceiro de Francenildo até hoje, em busca de justiça, pedidos de desculpas e indenizações.
Essa é uma constante no tratamento dos personagens envolvidos no escândalo: todos aqueles que tiveram participação positiva no caso (para o lado de Francenildo, claro) são retratados com benevolência e possuidores de características positivas. É o caso, por exemplo, de Wlicio, da repórter Rosa, que tomou especial cuidado ao apurar a matéria e do delegado Rodrigo Carneiro, responsável pela absolvição de Francenildo.
Dança dos lobos
Tratamento inverso é dado aos senadores participantes da sessão que interrogou o caseiro (a ressalva é feita ao senador Eduardo Suplicy, cuja caracterização tende mais para a ingenuidade). No caminho, Francenildo e o advogado rezaram, pois “tudo isso era muito novo” para eles.
A descrição do depoimento à CPI evidencia o claro propósito político do comparecimento do caseiro e a negligencia com que vários senadores trataram o assunto (a maioria foi incapaz de lembrar o nome do depoente). Os comentários reproduzidos são tão sem nexo e absurdos que a reconstituição da cena chega mesmo a ser engraçada. No fundo, “ninguém sabia quem ele era, e ninguém se importava.”.
Se, em algum momento, alguém tivesse prestado real atenção a Francenildo, e não na explosiva história da qual ele era testemunha, talvez hoje ele pudesse desfrutar de “um benfazejo anonimato”.
Por Tainara Machado
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